Proteger o Pantanal é manter viva a cultura da nossa gente.
José Atanásio de Lima, o Tio Juca como é conhecido é um dos mais velhos do quilombo do Chumbo no município de Poconé, região pantaneira do Mato Grosso. Tirar tempo para escutar tio Juca é aprender sobre a música da vida.
Fui escutando falar da comunidade do Chumbo, da perda do território que foi sendo esmagado pelas fazendas, da agricultura e de como conheceu meu avó Benedito - o Dito Fumo como era conhecido, vovô também quilombola percorria as comunidades de Poconé a Cáceres vendendo fumo e guaraná.
Seu Juca aos 72 anos se orgulha da sabedoria e da curiosidade que o tornou artesão e mestre cururueiro. A dimensão do mundo se amplia ouvindo e vendo manusear a viola de cocho que ele mesmo fabricou.
A viola de cocho é um marco da cultura pantaneira. Para os nossos mais velhos o instrumento faz parte da tradição e vem sendo confeccionado ao longo das gerações nas comunidades tradicionais e quilombolas na baixada cuiabana, utilizada nas danças e cantos do cururu e siriri.
Mesmo que os estudos apontem a origem da viola como portuguesa, com a chegada dos colonizadores está se fundiu com a culturas indígenas do centro oeste brasileiro.
Porém a cultura do modo de fazer ganhou formatos regionais ligados aos conhecimentos dos povos que aqui viviam e vivem. A escolhas das madeiras, o formato de fazer a viola é legitimamente pantaneiro. Tanto que foi reconhecida em 2004 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN como patrimônio imaterial brasileiro.
O nome viola de cocho deve-se à técnica de escavação da caixa de ressonância da viola em uma tora de madeira inteiriça, mesma técnica utilizada na fabricação de cochos (recipientes em que é depositado o alimento para o gado). A confecção, artesanal, determina variações observadas de artesão para artesão, de braço para braço, de forma para forma.
Os materiais utilizados tradicionalmente para sua confecção são encontrados no ecossistema regional, correspondendo a tipos especiais de madeiras para o corpo, tampo e demais detalhes do instrumento; um sumo de batata sumbaré ou, na falta desta, a um grude feito da vesícula natatória dos peixes (ou poca) para a colagem das partes componentes; a fios de algodão revestidos para trastes (que, na região, também são denominados pontos feito com cera de abelha) e tripa de animais para as cordas Entretanto, com exceção da madeira, esses materiais têm sido substituídos por produtos industrializados, tais como cola industrial, cera industrial e linha de náilon para as cordas (IPHAN).
Sobre o modo de fazer a viola seu Juca nos conta que aprendeu com a curiosidade, escuta e observação dos mais antigos.
Aprendizado meu foi pela curiosidade, não pedi aula pra ninguém, eu fui inventando de si por si.
Em 1998 adoeceu com um problema de bursite e teve que parar de mexer com a roça que era grande e boa, vendia banana e tudo que dava na roça, então para aumentar seu conhecimento decidiu inventar alguma coisa.
Eu não trançava mais laço também, não mexia mais com boiada, fui condutor de boiada muito tempo. Ai eu falei vou inventar e fazer a viola de cocho.
Conta que um amigo havia tirado umas madeiras e fez duas violas de cocho. Uma delas para ele, mas seu Juca já tinha uma viola de cocho e resolveu presentear um outro amigo tocador de cururu e siriri, o senhor Bonifácio (meu tio-avô) da Comunidade Quilombola vizinha Campina de Pedra.
Fomos em uma festa de santo tocar Cururu e Siriri e lá roubaram a viola do Bonifácio, e ele virou pra mim e disse: Você vai fazer uma viola pra mim! eu respondi que nunca tinha feito uma viola de cocho. E ele falou: você é inteligente e você vai fazer a primeira. E foi assim que eu fiz a primeira viola de cocho. O Bonifácio tirou uma raiz de Ximbuva e eu fiz a primeira viola, e não cobrei nada em troca.
Ele ia lembrando os lugares e estados que já visitou divulgando a viola de cocho. Mas suspira ao falar da tristeza que é ver a cultura se acabando, considera difícil encontrar nos dias atuais matéria prima para produção das violas e pessoas que queriam continuar a tradição. Com a saída da juventude das comunidades essa pratica foi diminuindo, outro problema é o desmatamento que acabou com as arvores que dão viola boa, comenta ele. Sem árvores, sem viola de cocho e sem siriri e cururu.
Esse negócio da desmata acabou com tudo, de primeiro aqui de todo lado que saiamos a gente achava a madeira pra gente tirar para fazer a viola, e hoje está difícil. A Ximbuva era a madeira que mais tinha, e o Sarã Gameleiro, o carrapicho, mas as matas virgens foi se acabando com as pastagens para o gado nas fazendas, e agora a soja no Pantanal.
Comenta que já aconteceu dele usar a arvore Sarã de leite, e em vez de tirar a madeira e fazer o cocho pra lado da raiz da arvore teve que fazer ao contrário. Pois as vezes dá vento, e precisa tirar o vento na lavragem da madeira.
O Sarã de leite sim da viola boa, mas é muito fácil pra rachaduras, as vezes a gente faz e depois de estar pronta a gente perde a viola. O vento chega a rachar de um lado para outro a madeira.
Em meio a tanto conhecimento e sabedoria sobre o manejo das arvores, seu Juca nos ensina que há também lua certa pra fazer uma boa viola de Cocho.
Para a madeira não dar caruncho a gente tira na lua minguante, e fabrica sempre na crescente ou na cheia. A lua cheia da viola de primeira qualidade.
Seu Juca artesão e educador da vida nos ensina que a cultura está totalmente ligada com o nosso meio, com o território e com a natureza. Aprendemos que proteger o bioma pantaneiro, seus recursos naturais, suas florestas é manter viva a cultura da nossa gente.
Terminei a conversa com Seu Juca ao som de uma entoada improvisada na sua viola de cocho.
Por: Fran Paula 06/04/2021
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