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Reparação biocultural: devolver o que nunca deveria ter sido tomado

Atualizado: 29 de jul.

Por Fran Paula

Imagem gerada por IA
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Reparar nunca foi apenas pagar. Para os povos quilombolas, reparar é devolver o que nunca deveria ter sido tomado: a terra, as sementes, os saberes, os modos de plantar, de curar e de cuidar da vida.

A reparação biocultural propõe uma restituição ativa — política, territorial, epistêmica e ecológica, das práticas históricas de manejo e conservação desenvolvidas por comunidades negras e indígenas ao longo de séculos. Ela reconhece que essas populações não apenas resistiram à escravidão, à invasão e ao racismo ambiental, mas criaram e sustentam até hoje formas de viver que protegem a biodiversidade, garantem alimentação e regeneram os ecossistemas.

Nos territórios quilombolas, esse cuidado se expressa em quintais, muxiruns, nas sementes crioulas, rezas e sistemas agrícolas ancestrais que articulam solo, água, tempo e ancestralidades. Essa diversidade de práticas é o que chamamos de agrobiodiversidade: um patrimônio vivo cultivado e transmitido entre gerações, majoritariamente pelas mãos e pela sabedoria das mulheres.

Essas práticas, historicamente desconsideradas pelas políticas públicas, hoje ganham respaldo em estudos internacionais. A recente pesquisa publicada na revista Communications Earth & Environment mostrou que os territórios de comunidades afrodescendentes tituladas no Brasil, Colômbia, Equador e Suriname apresentam até 55% menos desmatamento do que áreas similares fora dessas terras. O estudo também aponta que essas áreas concentram mais da metade das regiões de alta biodiversidade na Amazônia e abrigam estoques de carbono irrecuperável — aquele que, uma vez perdido, não se recompõe em menos de 30 anos (PEÑA et al., 2025).

Como afirmou a pesquisadora Martha Cecilia Rosero Peña, coautora do estudo e integrante da Conservation International:

“Os povos afrodescendentes das Américas serviram por muito tempo como guardiões do meio ambiente sem reconhecimento nem compensação” (FOLHA DE S.PAULO, 2025, s/p).

 

Esses dados apenas confirmam o que povos quilombolas sabem e vivem: proteger a biodiversidade é parte do nosso modo de existir, não uma estratégia de mercado ou uma solução emergencial.

Em texto anterior publicado na plataforma Agricultura Ancestral, já havíamos alertado sobre a conta histórica que segue em aberto:


“Dívidas têm valor, têm origem e têm destino. Mas quando a dívida é histórica e racial, parece que os credores estão sempre devendo mais do que recebendo. [...] Reparação, nesse sentido, não é favor, é justiça socioambiental” (PAULA, 2024, s/p).

 

Essa justiça, para ser efetiva, precisa incluir o reconhecimento pleno das contribuições desses povos na proteção do clima e na manutenção da vida. Não apenas como objetos de políticas públicas, mas como sujeitos produtores de ciência, de sistemas ecológicos e de futuros.

A pauta da reparação histórica vem ganhando força em escala internacional, sobretudo entre movimentos negros e indígenas que articulam justiça climática e decolonização. No contexto latino-americano, autoras como Catherine Walsh propõem a noção de “reexistência” e “reparação epistêmica”, defendendo que reparar é também devolver o direito de nomear, pensar e viver o mundo desde outros paradigmas de vida (WALSH, 2013).

Já o pesquisador Alejandro Argumedo defende a ideia de “territórios bioculturais”, enfatizando que a conservação ambiental depende da soberania dos povos tradicionais sobre seus territórios e seus saberes (ARGUMEDO, 2012).

Também é importante destacar que a conservação da agrobiodiversidade quilombola no Brasil não é apenas potencial, ela é concreta, viva e reconhecida. Um exemplo emblemático é o das apanhadoras de flores sempre-viva da Serra do Espinhaço (MG), comunidades quilombolas e tradicionais que manejam mais de 60 espécies florais nativas do Cerrado rupestre. Suas práticas foram reconhecidas pela FAO como um Sistema Agrícola de Interesse do Patrimônio Agrícola Mundial -SIPAM (FAO, 2020).

No estado de Mato Grosso, a comunidade quilombola de Ribeirão da Mutuca, no município de Nossa Senhora do Livramento, cultiva há mais de 200 anos o milho crioulo Caiano da Mutuca, livre de transgênicos e agrotóxicos. Esse milho é semeado coletivamente, armazenado, trocado com comunidades vizinhas e transmitido entre gerações por meio de muxiruns de plantio e colheita,  expressando uma tecnologia de resistência e autonomia alimentar diante do avanço do agronegócio e da contaminação genética no Mato Grosso.

Na Amazônia, quilombolas do Amapá e do Baixo Amazonas manejam espécies nativas como açaí, andiroba, bacaba, cupuaçu e mandioca, combinando extrativismo com sistemas agroflorestais tradicionais.

Na Mata Atlântica, no Vale do Ribeira (SP), comunidades como Ivaporunduva, Mandira e Pedro Cubas preservam variedades crioulas de arroz vermelho, feijão miúdo, taioba e banana da terra, utilizando práticas de coivara, manejo da capoeira e cultivos em mosaico com vegetação nativa.

Esses exemplos revelam que a agrobiodiversidade quilombola não é um conceito abstrato: ela se materializa em espécies preservadas, ecossistemas vivos e práticas adaptativas que equilibram alimentação, cultura e sustentabilidade. São saberes encarnados na terra e na história, que desafiam o apagamento e reforçam a urgência de uma reparação que devolva a esses povos o direito de continuar existindo e produzindo futuro.

Ainda assim, o Brasil já acumula perdas irreversíveis em seu patrimônio genético, biocultural e ambiental, causadas pelo avanço do desmatamento, da grilagem e do agronegócio sobre territórios tradicionais. Sementes foram contaminadas, solos foram degradados, rios foram envenenados, e práticas ancestrais de cultivo foram interrompidas. A conta da reparação não para de crescer, especialmente porque o Estado segue omisso em garantir o direito à titulação e à proteção efetiva desses territórios.

As próprias políticas ambientais muitas vezes operam sob lógicas coloniais, que classificam os povos quilombolas e indígenas como obstáculos ou meros “usuários” da natureza, negando-lhes o status de protagonistas da conservação. Sem reconhecimento pleno, sem território garantido, sem financiamento adequado, a contribuição desses povos é ameaçada diariamente por leis, empreendimentos e programas que reforçam a desigualdade e a exclusão histórica.

Esse cenário se agrava com a atuação de um Congresso Nacional amplamente capturado pelos interesses do agronegócio e do capital predatório, como evidenciado na recente aprovação do chamado “PL da Devastação”, que flexibiliza o licenciamento ambiental e fragiliza ainda mais os mecanismos de proteção dos territórios coletivos.

Em vez de garantir direitos e proteção, o Estado insiste em abrir caminho para retrocessos, aumentando a conta social, ambiental e climática que já pesa sobre os ombros dos povos que mais contribuem para a conservação.

Essa conta tem pesado, de forma brutal e seletiva, sobre os territórios quilombolas. Os impactos das mudanças climáticas,  como o aumento de secas prolongadas, enchentes, escassez hídrica e perda de cultivos – têm recaído desproporcionalmente sobre comunidades que historicamente protegeram os ecossistemas e mantiveram viva a agrobiodiversidade.

Isso não é coincidência, mas reflexo direto de um racismo ambiental estrutural, que naturaliza a exposição dessas populações à degradação ambiental, à insegurança territorial e à ausência de políticas públicas. Trata-se de uma forma persistente de violência, que combina exclusão histórica com negação do direito ao futuro

Portanto, efetivar a reparação biocultural exige mais do que boa vontade. Requer ações concretas, estruturantes e antirracistas, como:


  • Titulação imediata dos territórios quilombolas;

  • Reconhecimento legal das práticas e sistemas agrícolas tradicionais como patrimônio científico e cultural;

  • Apoio técnico e financeiro direto às comunidades para a reprodução de seus modos de vida;

  • Incorporação dos saberes tradicionais nas políticas de clima, biodiversidade e soberania alimentar;

  • Criação de mecanismos de pagamento por serviços socioambientais prestados por essas comunidades;

  • Proteção jurídica contra contaminação genética, por agrotóxicos, e invasões e violência no campo.

 

Reparar, nesse contexto, é também devolver dignidade ao saber. É permitir que os povos quilombolas continuem cultivando seus modos próprios de viver, não como resistência, mas como projeto de futuro.


Pantanal, julho de 2025.



Referências Consultadas


ARGUMEDO, Alejandro. Collective Biocultural Heritage: Concepts and Issues. London: IIED, 2012. Disponível em: https://pubs.iied.org/14618iied. Acesso em: 24 jul. 2025.

 

FAO – Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura. Sistema Agrícola Tradicional das Comunidades Quilombolas e Tradicionais Apanhadoras de Flores Sempre-Vivas reconhecido como SIPAM no Brasil. Brasília: FAO, 2020. Disponível em: https://www.fao.org/3/cb1714pt/cb1714pt.pdf. Acesso em: 24 jul. 2025.

 

FOLHA DE S.PAULO. Terras de afrodescendentes e quilombolas têm até 55% menos desmatamento, diz estudo. São Paulo, 23 jul. 2025. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2025/07/terras-de-afrodescendentes-e-quilombolas-tem-ate-55-menos-desmatamento-diz-estudo.shtml. Acesso em: 24 jul. 2025.

 

PAULA, Fran. Quem vai pagar essa conta? Agricultura Ancestral, 2024. Disponível em: https://www.agriculturaancestral.com/post/quem-vai-pagar-essa-conta. Acesso em: 24 jul. 2025.

 

PEÑA, Martha C. R. et al. Afro-descendant territories contribute to climate change mitigation and biodiversity conservation in the Amazon. Communications Earth & Environment, v. 6, art. 202, 2025. Disponível em: https://www.nature.com/articles/s43247-025-01234-0. Acesso em: 24 jul. 2025.

 

WALSH, Catherine. Pedagogias decoloniais: práticas insurgentes de resistir, (re)existir e (re)vivir. In: MIGNOLO, Walter; WALSH, Catherine. Pensamento decolonial: Epistemologias do Sul, teorias e pedagogias insurgentes. Buenos Aires: CLACSO, 2013. p. 21–61.

 
 
 

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